A morte também se lê: António Marcelino.

 

A morte também se lê: António Marcelino.

“Sem Memória e sem Tempo de memória fecunda,

não existimos e morremos lentamente”.

Tento escrever na eminência do fim. Emperro. A amizade que faz crescer, a instituição que não tem mão pesada e a história feita em comum, ambas se tornam Vida, Memória e Fé. António Marcelino está gravemente doente. Deseja morrer em terras de Aveiro. Releio o seu artigo no Correio do Vouga, 18 setembro 2013, seu “testamento vital”. Volto ao texto próprio “Um homem para os outros!” que escrevi em 08-12-2006, e lhe enviei por e-mail, de modo privado, e no modo do seu pedido para a publicação imediata como “carta aberta” no CV. Ao querer “facilidades”, emperro cada vez mais.

 Se o arrependimento fosse causa de morte, eu continuava vivo. É certo que arrependo-me perante certos «Mestres», que foram apreciados pelo filtro do Evangelho; na medida em que apontam e fazem luz sobre o verdadeiro Mestre dos mestres: Jesus Cristo. Como na parábola moderna da caminhada na praia, na hora do Gólgota, serão levados no colo de Deus. É disto que sinto necessidade de escrever com a intuição do instante. A relação com esse «tipo» de mestre cristificado arrasta somente para Deus, vida abundante (cfr. Jo 14,6;12).

Quero ter no presente tudo o que me ensinou e foi muito. Tudo em que foi uma testemunha pessoal e um testemunho personificado. Na vocação de padre não é ausência de problemas que nos traz felicidade. A ausência de problemas é sinal de vazio espiritual. Ou no mínimo tédio espiritual. A realização da vocação de padre e cristão, depende da boa administração de todos os problemas. Essa lição de discernimento existencial foi assumida por contágio. Por isso é tão fundamental e estruturante a leitura da Vida. Ler a vida aprendendo a sua gramática evangélica é para mim o seu legado.

De cada visita que faço sozinho ou na companhia de padres, de diferentes gerações, a Dor da partida aumenta. Dor consciente e purificadora. A sua Presença na ausência de gestos e palavras, está como um Todo Silencioso. O Silêncio e o Rosto dizem tudo na sua urgência. O Ser prepara-se para a plenitude: nu assisto no meio da minha impotência. Minha oração é pobre na Gratidão.

“Que andas a ler? – Eu tenho lido…”; “Não se podem subverter as instituições”; “Não percam tempo…”; “Não vai com Filosofia… contudo roda livre”. Guardo imensas provocações e confidências, sempre oportunas e existenciais, dentro e fora de tempo, repetidas em todos os encontros pessoais. Guardo um retiro de padres pregado em Fátima e as viagens de ida e volta, acrescida de um cheque em branco para comprar os livros que muito bem entendesse, serem importantes para actualização teológica e não só. Guardo “Nunca lemos o suficiente para responder aos problemas pastorais e das pessoas”. Guardo os e-mails concisos e esparsos, sempre recebidos como dons, recheados de graças, epifanias de sentido e desafios para mais responsabilidade, durante os nove anos em que trabalhei no Maranhão. Guardo as leituras dos seus escritos pastorais e dos livros que publicou após a condição de emérito hiperativo, sempre ao seu modo acutilante e profético. Guardo a sua agenda aberta diante de mim, e de todos, totalmente riscada a contra gosto e feitio. Guardo as homilias e palestras em pé sem a mitra na cabeça. Guardo onde deve ser guardado tudo o que é importante.

Ao morrer assim… sabemos definitivamente que a Vida também se lê, em Mistério Pascal, como tanto nos provocou, para que fosse a nossa chave hermenêutica na pastoral e na nossa espiritualidade encarnada no dia a dia. O Bispo António Marcelino está dentro de nós. Tal como uma centelha do Divino Espirito Santo. Seu Ardor nos queima suavemente. “A vida também se lê”. A vida eterna ganha para nós o Sentido da Ressurreição, como agora cada vez mais numa verdadeira biografia completada em Deus.

 

Pe. Pedro José, CDJP e Paroquias: Gafanha da Nazaré/Encarnação/Carmo, 09-10-2013,

caracteres (incl. esp), 3708.

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2 respostas a A morte também se lê: António Marcelino.

  1. cefas1972 diz:

    cefas1972 posted: ” A morte tambm se l: Antnio Marcelino. Sem Memria e sem Tempo de memria fecunda,no existimos e morremos lentamente. Tento escrever na eminncia do fim. Emperro. A amizade que faz crescer, a instituio que no tem mo pesada e a histria feit”

  2. assumo plenamente a tua leitura da vida de D. António Marcelino, a partir da relação que tiveste com ele e com as suas obras. Partilho a dor comum, mas mais ainda a esperança pascal, chave de leitura definitiva. Permaneço unido no reconhecimento e gratidão.

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