O AMOR NÃO É UMA DROGA
[1.] “O amor é a única necessidade do ser humano. Amar e ser é o mesmo. A sexualidade não é amor. O amor diz: “Não sou eu que amo, mas é o amor que está aqui, é minha essência, e nada mais posso fazer se não amar”. Uma atitude assim surge livremente quando estamos despertos e nos livramos de todos os nossos preconceitos.
[2.] Quando entendemos que nós somos felicidade, não precisamos fazer mais nada. Apenas deixar cair as ilusões. Os desejos crescem porque criamos em nós mesmos a ilusão (porque assim nos ensinaram e lemos em muita literatura barata) de que temos de conseguir a felicidade procurando por ela fora. E isso nos leva a nos agarrar às pessoas que acreditamos produzir felicidade, com medo de perdê-las. Mas, como as coisas não são assim, nós nos deixamos dominar pela infelicidade, desilusão e pela angústia quando essas pessoas falham, ou quando acreditamos que falharam.
[3.] A aprovação, o sucesso, o elogio, a valorização representam as drogas com as quais a sociedade nos viciou. Basta não obter isso para enfrentarmos um sofrimento terrível. É importante nos livrar de sensações assim, despertando para ver que tudo não passa de ilusão. A única solução é deixar a droga, embora tenhamos de enfrentar os sintomas da abstinência. Como viver sem algo que era tão especial para nós? Como existir sem o aplauso e a aceitação? Trata-se de um processo de subtração, de desprendimento em relação a essas mentiras. Escapar disso é como fugir das garras da sociedade.
[4.] A pessoa chega a um estado de grave incapacidade de amar, porque é impossível que veja os outros como de fato são. Para voltar a amar, terá de aprender a ver as pessoas e as coisas ao natural, sem disfarces. Começando por si mesma. Para amar os outros é preciso abandonar a necessidade que sentimos em relação a essas pessoas e a sua aprovação. Basta aceitar a nós mesmos.
[5.] Temos de ver claramente a verdade, sem qualquer tipo de engano. Devemos nos alimentar com coisas espirituais: companhia alegre, amizade sem apegos ou desejos, praticando nossa sensibilidade com a música, uma boa leitura, a natureza…
[6.] Pouco a pouco, aquele coração que era um deserto, sempre cheio de uma sede insaciável, transformar-se-á num imenso campo que produz flores de amor por todo lado, ao mesmo tempo em que a pessoa ouve uma maravilhosa melodia: é o encontro com a vida.
[7.] Lembremo-nos de uma das passagens do Evangelho em que Jesus, depois de mandar a multidão de volta para casa, fica ali sozinho. Que maravilhoso é esse amor! Só quem sabe manter independência em relação às outras pessoas sabe amá-las como elas são. Estou falando de uma independência emocional, livre de todo apego e de toda recriminação, que torna o amor forte e clarividente. A solidão é necessária para que possamos nos colocar fora de toda programação e preconceito. Somente a luz da consciência é capaz de expulsar todas as ilusões e os pesadelos que influenciam a nossa vida, ao mesmo tempo em que expulsa os rancores, as necessidades e os apegos.
[8.] Como começar? Dando os verdadeiros nomes a todas as coisas. Temos de chamar as exigências de exigências e os desejos de desejos, e não disfarçá-los com outros nomes. No dia em que entrarmos de fato na nossa realidade, quando não resistirmos mais a ver as coisas como elas são, estaremos começando a nos libertar de nossa cegueira. É possível que continuemos a ter desejos e apegos, mas já não nos deixaremos enganar.
[9.] Devemos nos alimentar de prazeres naturais, desfrutando da natureza, exercitando o tato, a audição, a visão, o paladar e o olfato. Existe todo um mundo a descobrir, a partir dos nossos sentidos atrofiados. Perceberemos então que não precisamos de muita coisa para encontrar a felicidade, além daquilo que já temos. Temos de nos sentir livres, autónomos, seguros de nós mesmos, apesar de reconhecermos as nossas próprias limitações. Ou talvez até por isso mesmo, porque aceitamos a criatura ilimitada que somos, apesar das formas medíocres em que nos desenvolvemos. A única maneira de nos tornar fortes, sem necessidade de qualquer tipo de apoio ou apego, é procurando nossa vinculação com a realidade.
[10.] É poder dizer aos amigos que não dependam de nós para encontrar a felicidade, porque podemos morrer de um momento para o outro e decepcioná-los. É preciso que cada um encontre sua felicidade na vida, porque, ao ficar livre, terá toda capacidade de amar. Amar é uma necessidade do ser humano, mas não uma necessidade da pessoa amada, nem do desejo. O vazio que temos dentro de nós faz com que tenhamos medo de perder as pessoas que amamos. Mas esse vazio só pode ser preenchido com a realidade. E quando caímos na realidade já não sentimos falta de nada, nem de ninguém. Nós nos sentimos livres e cheios de felicidade como as aves”.
FONTE: MELLO, Anthony, S.J., Autolibertação,
Edições Loyola, São Paulo, 72002, pp. 68-70.
Obs. A numeração dos parágrafos não se encontra no texto do autor.